Crônicas, bicicletas e All Stars


De Jerk


Professora

Algo anda me impelindo às bicicletas. Não apenas porque meu filme de animação predileto seja as Bicicletas de Belleville, nem porque sempre tive dúvidas entre casar ou comprar uma bicicleta. Não. È que a palavra insiste em aparecer para mim. Anúncios. Notícias. Conversas. Placas. Faixas de trânsito reservadas exclusivamente para ciclistas.
Bicicleta. Ecoa. Bicicleta. Justo este objeto? Curioso é que tem evocado em mim sensações das mais diversas.
Bicicletas!
Outro dia até me lembrei da musica de Toquinho. Bicicletas parecem ser idílios em duas rodas. Um idílio do qual eu nunca pude desfrutar. Não aprendi a andar de bicicleta. Não creio que tenha sido por conta da ausência de uma em casa, pois minhas irmãs aprenderam mesmo assim.
Bicicletas foram o sonho de consumo de muita criança, mas para aquelas que tinham telefone em casa poderia até ser uma realidade não tão distante. Elas podiam arriscar a sorte de ganhar uma no programa do Bozo. Ganhar uma bicicleta no Batalha Naval era a glória.
Irmã e eu não ousávamos pedir uma de presente. Papai Noel até existia, mas demorava mais de ano para passar por nossas bandas. Depois não trocaríamos as roupas por brinquedo. Blasfêmia! Também não tínhamos esse poder de barganha. Foi aí que aprendemos a amar o que tínhamos. Peguei amor aos meus sapatos. (Irmã ainda cultiva essa obsessão, diz ela que é quase uma arte.)
Melissinha não gostei muito não, dava um chulé danado. Gostava por demais do meu Conga, do Bamba mais ainda. Agora, nunca me esquecerei do meu primeiro All Star azul de cano alto. Nando Reis parece que também amou um, deve ser pela sugestão libertária contida nele. Já eu amei de forma possessiva, não tinha nada a ver com a liberdade.
Depois de um ano o All Star não cabia mais. Pela regra eu tinha de passá-lo adiante. Ah, não. Meu All Star azul de cano alto de apenas um ano de uso!
Só parei de usá-lo quando os calos não permitiram mais, então, ao invés de entregá-lo para a doação, os escondi. Era o que eu tinha de mais valioso. Lindo. Azul. E o cano alto? Desaforo!
Não duraram muitos meses, minha mãe descobriu o esconderijo e passou o sapato adiante. Pior, para aqueles homens estranhos da combi. Se ao menos pudesse doá-lo pra irmã e, de alguma forma, tê-lo perto de mim, mas o pezão dela não deixava.
Não estou falando de vaidade, nem de necessidade. Mas de apego àquilo com que nos identificamos. Eu era aquele All Star azul de cano alto. Tá, Narciso de frente pro espelho? Tudo bem, mas olha, o Eclesiastes há muito tempo também já disse que tudo é vaidade. E ele disse TUDO, viu? Por favor, não me condenem!
A questão era: não cabia uma bicicleta nesse contexto, só o meu All Star, que agora não me cabia.
Bicicleta: dois ciclos que giram, que servem para mover a vida, mas agora, precisamente, emperrava a minha. O mundo insistia em se dividir entre os que sabem andar de bicicleta e os que, por uma entrega amorosa, não sabem. Como pude chegar até aqui sem saber andar de bicicleta? Anomalia! Hoje vejo que muito pouco me serviu o amor dedicado aos All Stars. Deveria ter desejado uma bicicleta.
Um amigo, se é que assim posso chamá-lo, disse que agora seria algo impraticável, levando em consideração a minha atual massa corpórea e a força que a gravidade exerce nela, além do deslocamento
_Δt_, uma queda seria fatal. Quebradura na certa. Fiquei indignada. Como assim? E o tal de “Nunca é
Δv  tarde para aprender?”. Bordado, ponto cruz, crochê, jardinagem, yoga, meditação era mais recomendável.
Quando fico triste com a rudeza do mundo leio Bandeira. Não é que até ele partilhava da minha dor. Pela primeira vez os versos “andarei de bicicleta/ montarei em burro bravo” fizeram mais que sentido. Mas, Bandeira, quero minha Pasárgada aqui e agora. Vou aprender a andar de bicicleta. Agora é uma questão existencial, sabe, se aprendo ganho o jogo, ou seria uma questão transcendental?
Por enquanto vou paquerando aquele All Star branco de cano alto e, melhor, de couro, com a grandiosa vantagem de não ter de doá-lo a mais ninguém.


Comentários

  1. É por causa de textos como esse que a gente se inspira pra continuar escrevendo e chegar a esse nível. Tocou-me forte, especialmente por causa dos itens escritos. Uma maestria impressionante. Fã pra sempre aqui!

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  2. Sabe Lete, sei que vc ainda vai me fascinar muito com a sua foram de escrever, mas este texto foi simplesmente primoroso e inteligente. Bandeira, Nando reis, Eclesisastes, tudo entrelaçado com grande maestria. Estilo de quem nasceu pra coisa. A sua desenvoltura é magistral. Você escreve não mais pra se aperfeiçoar ou pra praticar, vc já faz literatura com autenticidade. Admiro muito vc!
    Confesso, chorei quando lembrei da Melissinha que nunca tive.Eu queria tanto ter tido uma... Lembro de todas as propagandas e da garotinha esperta que sempre dava um baile na professora.
    O melhor de tudo: não sou a única mulher que não sabe andar de bicicleta. Meu Deus! Em compensação, costumo sonhar pedalando uma dessas como se as dominasse desde sempre. É minha realização! Quando acordo, sinto-me cansada, como se tivesse praticado a maior das façanhas, acredita?
    All star? Nunca foi meu tipo. Sempre o achei horroroso! Rsrsrs, desculpa aí! Eu gostava mesmo era do Tênnis Redley, lindo! Consegui ter um, com muita peleja, era caro!
    Termino dizendo que ainda não ousei com a bici. Troquei a pela leveza da hidroginástica. Ei, acho que dá uma crônica, kkkkkkk! Vou pensar nisso!
    Forte abraço prima! Regi,

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  3. kkkk...como eu escrevi cada um escolhe um objeto para se apegar...se idenficar...se representar...Minhas formas de representações nem sempre são agradáveis...Ultimamente ando desejando ser um verme...sabe, tapuru? rs...Branquinho, cilindrinho devorando aquilo q ninguem mais quer...rs...Vai entender!
    Bj meu amor...
    Davi, vc é um anjo!

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  4. “Prima Aspirina,
    De algo tão cotidiano fez crônica, conto e quase poesia...

    Pra mim vez verter emoção. E comparação.
    Quem me conhece saber que sempre digo:
    “Até os setenta ainda ei de andar de bicicleta. Ei de aprender.

    To achando que sudestinas que somos devíamos marcar um encontro no Pq. Do Ibirapuera e juntas tentarmos este projeto.
    O Tarcis jura que nos ajuda...
    Ah, e lembre-se: Dá pra casar e comprar a bicicleta. É só não desistir.
    Do amor e da bicicleta.
    Beijos aspirinicos, Klas.”

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  5. “Lendo agora os comentários verifico que parte das Aspirinas (falta a Professorinha Rokátia se manifestar) não sabem andar de bicicleta!
    Meu Deus???Será que estávamos todas lendo dentro de casa na hora que devíamos estar brincando????
    Muitos fatos em comum nos cerca. Não é a toa que o Urubu Mor nos reuniu...
    Hehehe.
    Andar de bicicleta, antes dos 70, juntas no chão do Nordeste ou do Sudeste, pode ser uma meta de longo prazo, mas que podemos sonhar...
    Sonhar não paga nada e nos leva longe.
    ...Que tal comprarmos uma bicicleta nos próximos anos, meninas???
    Klas.”

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  6. KKKK, que maraaaaaaaaaaaavilha de terapia! EU NÃO SOU A ÚNICA MULHER depois dos 30 que não domina uma bici. adorei a meta klas. Sou meio frustrada pq não pedalo, acho tão livre quem consegue fazer isso... bjs linda!
    reina.

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  7. Arlete, você mostrou o quanto sabe como compor um texto. Essa é que eu posso chamar de verdadeira crônica, inteligente, intelectual e doce, das que encantam todas as castas. A inserção das fórmulas é incrivelmente contemporâneo, bem aplicada... uma preciosidade essa sua crônica, uma preciosidade.

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  8. Minha “ídola”, como é divertido seu texto, adoooro! Faço minhas as palavras da Regi, vc realmente nasceu pra coisa..Tô falando da escrita viu? kkk
    Até me animei e acho que vou dar continuidade naquele texto que ainda não sei se posso chamar de crônica, romance ou catástrofe!
    Te amo! Beijão da
    Tia

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  9. hj, de frente p farol enverdejavel, a Clara avistou uma velhinha ciclista, toda equipada, passando por nós na faixa de pedreste...Ela riu e eu mais ainda....Meninas, ainda há esperança!!!kkkk
    bj lete

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